sexta-feira, 6 de maio de 2011

Luiz Eduardo Soares...

Luiz Eduardo Soares – é ex-Secretario Nacional de Segurança Pública, autor de vários livros, entre eles Cabeça de Porco, Elite da Tropa e Espírito Santo. É também considerado um dos sociólogos mais importantes do país.

O PORRADÃO é isso, um espaço no qual possamos discutir temas relevantes, de forma objetiva e direta. Nesse caso, Luiz Eduardo Soares traz luz a temas como racismo, homofobia e política...




01 - Até hoje a sua saída da secretaria de Segurança Nacional não ficou esclarecida, qual foi o motivo alegado na época e quais foram às motivações reais ?

Um dossiê apócrifo* denunciando desde licitações fraudulentas para compra de viaturas até nepotismo foi vazado pela mídia por três policiais militantes do PT, ligados à própria secretaria, cujos interesses estavam sendo prejudicados por decisões minhas. As acusações do dossiê apócrifo eram tão absurdas que as publiquei no meu próprio site e as desmascarei uma a uma. Os interesses desses canalhas, covardes desonestos, estavam sendo afetados basicamente por duas decisões minhas: (1) não negociar com banco japonês o financiamento bilionário para a confecção de carteiras de identidade unificadas para toda a população brasileira; (2) não aceitar aparelhamento político da secretaria nacional ou de uma representação estadual que criei no Rio Grande do Sul. A esses dois pontos de tensão reuniram-se outros três, que afetavam outras esferas do poder: (A) a autonomia com que eu me movimentava e que me conferia muita visibilidade. Fui advertido por uma empresa paulista de comunicação que o então ministro da Justiça contratara para cuidar de sua imagem. Estabeleceram uma cota: eu só poderia aparecer na mídia nacional ou ocupar 25% do espaço que o ministro ocupasse. Quando a cota fosse atingida, eu teria de me recolher, recusar entrevistas, evitar muita exposição, viagens e ações públicas. Meu assessor de imprensa foi obrigado a gravar minhas entrevistas e repassá-las a esta empresa, mas ele se recusou e, por respeito a mim e aos princípios éticos mais elementares, denunciou a mim o que estava ocorrendo. Fui pedir explicações ao ministro, que negou o fato, pelo menos que ele soubesse e prometeu intervir junto à tal empresa. (B) No mesmo contexto, o então secretário executivo do ministério, atual ministro, me pediu que abdicasse formalmente de parcela do fundo nacional de segurança para viabilizar o funcionamento da polícia federal, cujo orçamento era insuficiente. Solicitei um encontro a três com o ministro e me neguei-me a aceitar aquele corte e a destinação para a PF do recurso que eu já havia negociado com os estados e que eram já tão diminutos. Disse que acreditava na capacidade do ministro de persuadir o presidente de que a PF merecia ajuda e não poderia parar. Afirmei que, por lei, o fundo não era fonte de recursos para órgãos federais. E que eventuais reduções no montante do fundo inviabilizariam a implementação de nossa política de segurança pública, expressa no plano nacional que o presidente apresentara ao país durante a campanha e que me cumpria aplicar. Além disso, cortes no fundo contradiriam a promessa do presidente de não contingenciar ou reduzir sob qualquer pretexto as verbas do fundo. (C) Por último, havia duas questões ainda mais graves: um conflito muito sério com o ex-ministro da Casa Civil, José Dirceu, desde 2002, por questões relativas à minha visão da ética; e o fato de eu ter conseguido que todos os governadores endossassem uma carta declarando sua adesão à construção do SUSP (sistema único de segurança pública).

*Apócrifo - diz-se de texto ou obra que não tem autenticidade confirmada


02. Como funcionaria esse sistema único de segurança?

O SUSP implicaria uma verdadeira revolução nas polícias e nas políticas de segurança. Todas as polícias teriam que respeitar princípios únicos em áreas chaves: da formação, da informação, gestão, perícia, controle externo e prevenção. Não são camisas-de-força, são exigências mínimas. Apesar de eu não estar fazendo mais do que tinha sido previsto e prometido no plano de governo, meu sucesso na obtenção da adesão dos governadores para criação desse plano nacional de segurança representava uma nova realidade política muito importante e desafiadora.

03. Por que esse projeto do SUSP não entrou em prática?

O presidente teria de convocar os governadores para celebrar o que chamávamos pacto pela paz, e para, com o apoio de todos, encaminhar propostas ao Congresso Nacional. Era o combinado. Ocorre que isso faria do presidente o grande protagonista nacional da segurança, deslocando a União para o centro e aposentando a velha atitude de transferir toda a responsabilidade para os estados. Claro que é mais confortável deixar a bomba no colo dos governadores, mas não é correto, como dizia nosso plano, explicitamente Não era certo e prometemos mudar isso. Entretanto, a hora de mudar tinha chegado e os assessores mais próximos do presidente perceberam que, politicamente, aquilo poderia provocar desgaste político para o presidente e o governo federal. Melhor seria esquecer. Esquecer o que dissemos, as críticas que fizéramos ao presidente Fernando Henrique e todas as nossas promessas. E meus esforços nos dez meses de negociação com os estados. Melhor sepultar tudo isso, por uma pedra em cima e não falar mais no assunto, contando com a incrível incompetência da mídia, nesse caso. Para isso, no entanto, era preciso me sepultar junto, me calar. E o único meio de fazê-lo, de me tirar do caminho, era me jogar para fora do governo, ceifando minha única arma: o respeito e a credibilidade que minha biografia merece. Como arruinar uma biografia? Como destruir uma reputação construída por tantos anos de trabalho sério? Com acusações desmoralizantes, que afetassem a área ética, da honestidade. Por isso, o dossiê veio a calhar, e contou com o apoio da Casa Civil e do próprio ministério, clandestinamente. Como sei disso? Porque os três canalhas que prepararam o dossiê sempre foram servis. Jamais teriam a ousadia de promover um ataque apócrifo na mídia, facilmente investigável, contra um secretário nacional com minha trajetória, correndo o risco de serem definidos como inimigos do governo federal e do PT. Quem sempre foi pau mandado, numa situação de extremo risco e de imensa covardia e desonestidade, nunca se exporia à perda de cargos e à expulsão do partido. Agiram porque seus pequenos interesses corruptos se casaram com outros grandes interesses políticos. Aprendi, na pele, por atitudes de pessoas que admirava e respeitava, que os novos donos do poder não tinham nenhum escrúpulo. Nenhum. Absolutamente, nenhum. Os fins é que importavam. Os meios valiam, quaisquer que fossem. Que eram capazes de pisar na mãe, de esmagar companheiros, de jogar no lixo uma vida inteira de trabalho e militância como quem cospe uma guimba de cigarro. Analisando, anos depois, o que aconteceu, vejo que tinham mesmo de me tirar da frente, de me afastar da secretaria nacional de segurança. Eu jamais aceitaria conviver com o mensalão e os esquemas derivados.


04 - Ao sair do governo Lula, ao contrário da maioria, você saiu atirando em tom de desafio, um dos seus alvos foi o José Dirceu. O que você disse na época e qual sua posição a respeito do Jose Dirceu hoje?

O que disse, em essência, agora repito: discordo da ideia de que os fins justifiquem os meios. Por mais belos que sejam os fins, nada justifica a instrumentalização das pessoas ou que, por conveniência tática, se tomem atitudes iguais às que antes eram criticadas. Acho que Dirceu pensa o oposto e sua prática expressa com coerência sua visão. Lamento, porque ele tem virtudes e talento. Mas o fato é que isso nos afasta irremediavelmente.
05 - Você foi secretario de Segurança Pública Nacional e também do Rio de Janeiro. Referente às suas decisões, tomadas durante esse período, o que você não repetiria?

O que eu não repetiria? Aceitar trabalhar como secretário de um governador que não compartilhe inteiramente o compromisso de realizar as mudanças necessárias, qualquer que seja o preço político a pagar. Sem que o governador ou o presidente vista a camisa, inteiramente, da nova política de segurança e do projeto de revolucionar as polícias, a começar pagando salários decentes aos policiais, não adianta um secretário se arriscar, lançar sua vida no projeto. Vai trabalhar sem o apoio necessário e vai acabar sozinho, quando as primeiras dificuldades importantes aparecerem.

06. Na atual situação, qual você acredita ser a saída para a violência do Estado?

Quanto à saída, escrevi muito a respeito. Vamos ter de mudar as polícias, completamente, como já disse, a começar, repito, pelos salários, e vamos ter de combinar ações preventivas inteligentes, com a participação das comunidades, com uma orientação policial voltada para a defesa da vida e também dos direitos constitucionais dos cidadãos. Como construir uma política assim complexa e transformadora? É difícil, mas não impossível. Mas não dá para resumir. Quem tiver curiosidade poderia dar uma lida nos livros "Meu Casaco de General" (Cia das Letras, 2000) e, principalmente, "Segurança Tem Saída" (Sextante, 2006).


07 - Dizem que você escreveu sozinho o livro "Violência e Criminalidade no Rio de Janeiro (1998). ", que é assinado pelo ex- governador Anthony Garotinho, isso é verdade?

Eu o escrevi com alguns colegas convidados. Garotinho estava de acordo e entrou para a co-autoria, o que era legítimo, uma vez que ele afirmava que havia plena harmonia com as ideias e declarava a disposição de aplicar as ideias, fazendo-as de todos nós, juntos, na prática.


08. Qual a sua avaliação sobre o Garotinho quando o assunto é lealdade?

Infelizmente, ele foi leal às ideias e a mim até certo ponto. Depois, infelizmente, preferiu a lealdade a seus projetos políticos pessoais, como exponho no livro sobre minha experiência no governo do Rio, Meu Casaco de General (2000).

09- Qual a sua opinião sobre a política atual de segurança do Brasil e do Rio de Janeiro ?

Até há pouco tempo, no Rio não havia nenhuma. Repetia-se a velha, desgastada e desastrada prática das incursões bélicas nas favelas, que os políticos gostam de denominar "política de confronto", como se fosse uma novidade. Nada mais velho, nocivo e equivocado. E ineficaz. Só gera morte e sofrimento. Até mesmo para policiais. Os desastres foram tantos e os resultados continuavam tão desanimadores que, ante o desgaste político, o governador Cabral resolveu adotar as UPPs, que são nada mais nada menos do que a retomada de programas que implantamos em 1999 e 2000, com os mutirões pela paz e o GPAE, este implementado pelo ten-cel Carballo Blanco. Apesar do sucesso, esses programas haviam sido suspensos. Aplaudo sua retomada. Os nomes podem ser diferentes. Que o governador fique com os créditos políticos. Ótimo. Tudo bem. O importante é fazer isso a sério e a chegada ao governo de uma pessoa extraordinária, que é o novo secretário de assistência social e direitos humanos, Ricardo Henriques, me enche de esperança. Agora, as UPPS não são uma política de segurança. São uma pequena parte. A parte chave, crucial, continua intocada: a mudança das polícias. Sem isso, as UPPs continuarão a ser apenas algumas ilhas no oceano da corrupção, da brutalidade policial, e também do desrespeito aos próprios policiais.
Quanto ao Brasil, digo o seguinte: Admiro Tarso Genro e acho que o Pronasci, com todas as suas limitações, foi um avanço. No entanto, nem mesmo o Tarso conseguiu fazer o governo federal mover uma palha sequer rumo à reforma (que deveria ser radical e urgente) das polícias brasileiras. Claro que as transformações mais profundas terão de passar pelo Congresso, mas o governo tem influência, tem uma base política, tem poder de mobilizar opiniões, apoios e dinâmicas positivas. Foi uma imensa decepção. Desde que eu saí, nosso plano foi arquivado (salvo em suas dimensões sociais preventivas e educacionais, visando aprimorar a formação policial, duas áreas nas quais houve avanços, graças a Tarso e a Ballestreri). A parte mais substantiva e impactante do plano foi para a gaveta, quando eu saí. E a mídia se calou a respeito. A sociedade não se mobilizou. Já o processo das conferências acabou sendo tremendamente frustrante, justamente porque não interessava ao governo federal que saísse alguma proposta que apontasse no sentido da mudança do modelo de polícia e da reforma policial. Simplesmente porque o governo federal não queria se comprometer. Muito mais fácil é lavar as mãos, deixar o desgaste com governadores e prefeitos, e nas crises aparecer como o bom pai que presta uma ajuda solidária. Quando dois parceiros trabalham juntos, o que há é parceria, trabalho compartilhado. Quem fala em ajuda é porque está fora, longe e estende a mão, eventualmente. Lamento muito também que o governo federal tenha sido pusilânime e conivente com o genocídio de nossos jovens negros e pobres, moradores de bairros pobres, comunidades e favelas. A violência policial no Rio é campeã mundial. Entre 2003 e 2009, inclusive, 7854 pessoas foram mortas por ações policiais no estado do Rio. Adivinhem quantos casos envolveram execuções? Adivinhem onde ocorreram? Adivinhem a classe social de todas as vítimas e a cor de pele da maioria?

10. Qual sua opinião sobre a descriminalização das drogas ? Qual a sua sugestão para a solução desse problema?

Sou a favor. Aliás, publiquei o primeiro texto defendendo a descriminalização há 30 anos. Por motivos filosóficos e pragmáticos. Os filosóficos: a meu ver, o Estado não tem o direito de dizer o que um adulto pode ou não ingerir em sua casa, desde que não dirija nem ponha a vida dos outros em risco. Se pode ingerir açúcar, gordura, sal, colesterol, café, cigarro, álcool, maconha ou tranquilizantes, por exemplo. Se for para proibir o que pode levar à morte, comecemos pelo cigarro e o álcool, que são os mais perversos e destrutivos, e os que mais matam no país, sem comparação. Há mais de 15 milhões de alcoólatras no Brasil. Não preciso dizer mais nada. Portanto, vamos parar com essa revoltante hipocrisia que me deixa mais do que indignado, porque brinca com a inteligência das pessoas como se elas fossem estúpidas.
O dia em que o país criminalizar o álcool, vou passar a levar a sério o argumento proibicionista das drogas. Só que ninguém é maluco de propor a proibição do álcool, porque a lei não seria jamais aplicada e criaria um tráfico de álcool muito mais violento do que o das atuais drogas ilícitas. As drogas ilícitas fazem mal para a saúde? Sim, fazem. E daí? Tudo o que a ciência descobrir que faz mal vai ser proibido e criminalizado? Se faz mal, não tem sentido abordar o problema com polícia e prisão. Tem sentido abordar com educação e saúde, apostando na cultura, porque foi assim que o país está batendo recordes na queda do consumo do cigarro. Basta disciplinar a venda, proibir propaganda, restringir espaços para uso e difundir uma imagem negativa baseada em fatos reais, científicos, sem moralismos. Os motivos pragmáticos: não existe, na prática, proibição de drogas. Existe apenas na lei. Quer fazer um teste? Saia de casa, ande até a esquina mais próxima e procure se informar onde e como você pode adquirir drogas. Você vai ver que nada é mais fácil. Isso não acontece somente no Brasil. Acontece em todo o mundo não teocrático e não totalitário.

11. Você acha que para mudar essa realidade tem de haver uma mudança de atuação da polícia, um salto de qualidade?

Nada tem a ver com a qualidade das polícias, ainda que o tráfico se alimente da proibição e que seja uma fonte poderosa de corrupção policial. Os EUA investiram bilhões de dólares na guerra às drogas e o consumo não sofreu alteração. Nada mudou. Portanto, a questão real, verdadeira, prática, não é: devemos ou não proibir o acesso às drogas. Se o acesso é um fato inegável e irreversível --porque é impossível controlar compra e venda quando há demanda e oferta--, a pergunta é: em que contexto prefirimos que esse acesso se dê? Em um contexto jurídico-político em que tal acesso seja criminalizado? Ou em um contexto em que ele seja objeto de políticas de saúde e educação? Não existe outra pergunta séria e realista. Goste-se ou não. Ora, se a pergunta realista, não hipócrita, é esta são esta (em que contexto é preferível viver ou é menos ruim viver, no contexto criminalizador ou no outro?) tratemos de responder. O contexto criminalizador aborda a questão com polícia e prisão. O que acontece? Reduz-se o consumo? Não. Todo mundo vai preso? Não. Só vão presos alguns, porque é impossível controlar e também porque prospera a corrupção policial (mas mesmo sem corrupção seria inviável controlar).

12. Quem são esses “alguns”?

Quem são esses alguns? Você tem dúvida? Leia os dados e comprove: só vão presos os pobres e, sobretudo, os negros. Ou, quando adolescentes, vão para as entidades sócio-educativas. A turma da classe média não consome drogas, nem vende? Consome, sim, e vende. Muito. Mas a desigualdade no acesso à Justiça faz a máquina se mover sempre no velho padrão classista e racista conhecido. Resultado: tem servido para quê a atual política? É só olhar em volta. Para conter o consumo ela não serve, mas para criminalizar os pobres ela é uma beleza. Um tremendo sucesso. Que tragédia, hein? Ano passado dei ao ministro Tarso Genro, pessoa que respeito e admiro, uma proposta de plano nacional contra o crack. Ali eu tentei desenvolver métodos de prevenção e tratamento que não envolviam punição, mas o envolvimento da sociedade e a difusão da consciência, além de muito investimento em saúde.

13- Qual é a sua posição a respeito das cotas para negros e como você percebe a mídia sobre esse tema ?

Sou a favor das cotas, ainda que preferisse que elas não fossem necessárias, é claro. Fui um dos primeiros a defender ações afirmativas e cotas, no Brasil. No começo, há uns 15 ou 20 anos, mais ou menos, muitos amigos que hoje são favoráveis eram contrários e achavam que eu estava "americanizado" ...! Sou a favor porque, apesar de o Brasil ter sido um dos países que mais rápida e profundamente mudou, no século XX, a despeito de passarmos de uma colônia inglesa e americana, agrícola, exportadora de matéria prima e importadora de manufaturado, com a imensa maioria da população no campo, para uma realidade urbana, industrial, apesar de termos nos tornado a oitava economia do mundo e de termos construído uma democracia política com uma Constituição regida pela equidade e conforme aos direitos humanos, a despeito de tudo isso, o racismo e a desigualdade entre negros e brancos permanecem praticamente intocados. Os dados são impressionantes. Nem em laboratório seria possível produzir esse resultado: mudar intensa e celeremente toda uma sociedade e manter intacta a relação iníqua entre negros e brancos, no que diz respeito ao acesso à renda, ao poder, à educação e à justiça. Em 70 anos, a diferença entre a escolaridade de brancos e negros tem se mantido em 2,5 anos. Ou seja, nos restam duas opções: esperar que esse tipo de desenvolvimento econômico desigual siga em frente, esperando que a longo prazo as desigualdades diminuam, assim como o racismo, ou agir imediatamente para intervir nessa distribuição desigual de poder, recursos, educação e justiça. Mesmo que essa intervenção seja artificial, ela precisa ser feita. E não falo em dívidas com o passado, porque não acredito nisso. Acredito em minha responsabilidade, hoje. Creio e quero cobrar a responsabilidade dos vivos, dos nossos contemporâneos. As ações afirmativas são uma resposta às absurdas, repulsivas, abjetas, vergonhosas, cruéis iniquidades do presente. Vamos tolerar o inaceitável? Vamos naturalizar as injustiças? Vamos ser cúmplices desse estado de coisas? E não me venham dizer que cotas inventarão o racismo no Brasil. Como se ele não existisse, hoje, e da forma mais cínica e infame. Queria que ocorresse um milagre e que os que negligenciam o racismo brasileiro amanhecessem negros e passassem uma semana sendo negros no Brasil. No oitavo dia, despertariam brancos, de novo, mas com a memória dessa semana intacta. Queria ver se teriam o desplante de negar a virulência o racismo brasileiro, tropical e hipócrita.
Quanto à mídia, não saberia dizer. Entre os jornais que leio, me impressiona como O Globo tomou partido contra as cotas. Acho profundamente lamentável. Que os editores tenham suas posições, tudo bem. Cada um deve se posicionar e é livre para assumir seu próprio ponto de vista. Mas é triste a arrogância, o autoritarismo, os truques com que praticam sua escandalosa parcialidade. Um mínimo de competência e profissionalismo exigiria um tratamento mais equilibrado, que não desconstituísse um dos pólos em disputa.

14 - Você concorda com o antrópologo Demetrius Mongnoli quando ele diz que a genética humana provou que o homem não se divide em raças? É correto associar essa conclusão com o tipo de preconceito que temos no Brasil ?

Respeito o Demétrio, mesmo quando discordo dele. Trata-se de uma pessoa extremamente inteligente e seus argumentos devem ser sempre levados em consideração. Nesse caso, discordo dele, porque o fato de as raças biologicamente não existirem --e é claro que não existem--, não quer dizer que as sociedades não reconheçam a cor da pele como marca de diferenciação e lhe atribuam significados. Por isso, o preconceito existe, quando as cores se tornam marcadores de distinções, configurando preconceitos, estigmas e hierarquizações, e distribuindo poder desigualmente. Ou seja, a raça não existe, biologicamente, mas o racismo com base na cor da pele existe, socialmente.

15. Você disse em uma entrevista que “um negro caminhando pelas ruas de uma grande cidade é um ser socialmente invisível”. O que você quis dizer com essa afirmação?

Pois é, isso dá filme, documentário, livro e samba, digo, Rap! E já deu... Resumindo uma longa história, digo que há duas maneiras de não ver uma pessoa: desviando o olhar, fingindo que ela não está li, diante de você, ou projetando sobre ela um preconceito, um estigma, uma imagem pré-concebida. Se a imagem é pré-concebida, ela não corresponde à pessoa. Pelo contrário, a anula.

16. Quais as motivações que impulsionam o surgimento desta “imagem”?

Essa imagem estereotipada é apenas o retrato de nossa própria intolerância. O reflexo daquilo de pior que temos em nós. De todo modo, pela indiferença --real ou fingida-- e pelo preconceito, a pessoa não é vista. E quando não nos olham nos olhos, quando o outro não reconhece nossa presença humana, não devolve a nós nossa imagem real ungida de valor, nós sentimos que estamos sós, habitando o vazio, e carecemos de apreço, respeito, reconhecimento, acolhimento. Sozinhos nada somos. Só nos construímos como pessoas graças ao reconhecimento, ao acolhimento dos outros. Só nos completamos como seres humanos, seres sociais, pessoas, sujeitos, desse modo, nessa interação com o outro acolhedor, que reconhece nossa individualidade e a valoriza, pela atenção, pelo olhar desarmado, pelo afeto, pela generosidade de um bom dia, pelo afago de um boa tarde, pelo milagre de um "como vai você?"

17. E quem seria esse “outro acolhedor”?

Quem são os outros de quem dependemos para construirmo-nos como pessoas, para que não nos falte auto-estima, auto-respeito, auto-confiança e capacidade de amar, sonhar, ser feliz? Os pais ou aqueles que, em casa, ocupam esse lugar. A comunidade na qual crescemos. A escola, A sociedade, em geral, porque cruzamos com os outros seres humanos por todo canto. Quando vivemos traumas em casa, na escola e na comunidade, e quando a sociedade exercita com arrogância e medo a indiferença ou o preconceito, isto é, quando a sociedade não nos vê, acabamos profundamente afetados e nossa auto-estima se arruina. A fome de ser, de ser valorizado, reconhecido, acolhido, visto, pode levar a que os "invisíveis" busquem uma arma para tentar sair do sufoco da invisibilidade. A arma pode ser um passaporte para a visibilidade, uma vez que, pelo uso da arma, em um assalto, é possível provocar no outro um sentimento, por pior que ele seja, obrigando o outro a olhar e ver, ainda que seja um olhar cheio de ódio e medo. A opção é trágica e as consequências são as piores possíveis. É como se alguém, morrendo de sede no deserto, encontrasse um frasco de veneno e o bebesse. Mata a sede e tende a matar a própria pessoa cuja sede foi saciada.

18. Atualmente temas atuais são os casamentos Gay, adoção de crianças por casais Gay e outras tantas conquistas que o movimento tem alcançado. Porém, por outro lado parte da sociedade se sente patrulhada por não ter direito de discordar sob pena de ser taxada de homofônica. Qual sua avaliação ?

Na realidade, acho absurdo que ainda haja quem seja contra o direito de uma pessoa de fazer o que quiser desde que esse fazer não produza prejuízos para os demais nem afete a liberdade dos outros. Se uma pessoa quer fazer sexo com outra, isso só diz respeito aos dois ou às duas, e a mais ninguém --a menos que você esteja envolvido com uma delas e, nesse caso, vai se sentir rejeitado e vai ter um acesso de ciúme. Fora disso, a sociedade não deve se meter. Muito menos o Estado. Se além de sexo as pessoas querem viver juntas, ótimo. Qual o problema? Caso se amem, que maravilha. Melhor ainda. A partilha da casa e da vida se transforma em um casamento. Que bom. Se essas pessoas convivem com razoável estabilidade e têm condições materiais de adotar crianças, que maravilha! De que precisam as crianças, além de condições materiais básicas? Amor e tudo que vem junto do amor. Qual o problema? Vamos ter no futuro mais gente feliz e menos preconceito. Que ótimo. Agora, se alguém se sente no direito de julgar o amor dos outros, o desejo dos outros, o sexo dos outros e a capacidade dos outros de educar e dar amor, vai ter no mínimo que ouvir muito. Ouvir muito até se sentir patrulhado. Por que? Porque quando os conservadores moralistas posicionam-se contra o casamento gay e a adoção, não estão apenas democraticamente manifestando suas opiniões, o que seria legítimo. Estão exercendo seu poder de maiorias e impedindo a minoria de viver em plenitude seu amor, seu desejo, sua vida. O que é muito grave e tirânico. Portanto, recorrer à arma da denúncia contra os que são homofóbicos é o mínimo que a minoria oprimida pode fazer. Até para reverter positivamente à humilhação a que é, sistematicamente, submetida. E se alguém puxar do coldre o argumento-arma de que os filhos adotados por casais gays não serão saudáveis, eu saco minha resposta-arma, dizendo que a família tradicional é um modelo repleto de patologias e fonte de doenças, neuroses, abusos e violências infinitas, contra mulheres e crianças.

19. Considerando que estamos chegando ao início formal de uma campanha eleitoral no Estado do Rio de Janeiro, qual a sua avaliação dos candidatos abaixo mencionados, o que eles têm de bom ou de ruim para contribuir com o nosso Estado?

Fernando Gabeira

Admiro Gabeira desde que li "O que é isso, companheiro?", antes de ele voltar do exílio. Naquela época, nem todo mundo que lutava contra a ditadura tinha também uma visão crítica do modelo soviético ou do chamado "socialismo real". Ele tinha toda clareza sobre a falência dos tipos autoritários de socialismo e uma visão crítica da falta de auto-crítica das esquerdas brasileiras, sobretudo por parte dos grupos que se engajaram na luta armada. Ou seja, Gabeira criticava a esquerda ortodoxa e os heterodoxos que se armaram. Basicamente, mostrava que pouca gente na esquerda realmente lutava pela democracia. Para a maioria, a democracia era um estágio provisório, uma espécie de baldeação histórica a caminho do paraíso comunista, em que a nova ordem seria mantida por uma ditadura da classe operária. Claro que como uma classe é composta por milhões de pessoas e, portanto, não cabe inteira em gabinetes governamentais... Quem mandaria mesmo seria a elite de um partido. Gabeira desmascarou essa visão elitista e militarista das esquerdas e desnudou também a caretice de nossas esquerdas, que proclamava a revolução mas ria das piadas homofóbicas, convivia perfeitamente com o machismo, reproduzindo-o, e não valorizava a luta específica contra o racismo. Claro que Gabeira não inventou a roda. Muita gente no mundo todo e no Brasil já falava tudo isso, desde pelo menos a importantíssima explosão de 1968. Mas ele encarnou bem essa posição que combinava apreço verdadeiro e radical pela democracia, culto dos valores que eram os mais belos das tradições socialistas (justiça, igualdade, fraternidade) e um compromisso com a paz, a liberdade individual, o respeito às diferenças e às minorias. Ele era um performer. Chegou e foi à praia, vestindo uma sunga bem pequena. Provocou o machismo, a caretice e todo o conservadorismo moralista de nossas tradições ibéricas e católicas. Depois, Gabeira foi defender os presos comuns contra os abusos, as violações de seus direitos, as humilhações e violências. Tinha sido preso e torturado e não se esqueceu de que os pobres, no Brasil, sempre mofaram na prisão e sempre foram torturados e aviltados. Sobretudo os negros. Gabeira não se esqueceu disso e continuou lutando contra a tortura e o desrespeito aos direitos humanos mesmo quando os beneficiários da luta deixaram de ser os militantes de esquerda de classe média e brancos. Entrou na política e sempre manteve uma postura aberta e honesta. Criticou o sectarismo hipócrita do PT quando o partido expulsou seus 3 deputados federais que votaram em Tancredo Neves (e contra Maluf, portanto), no Colégio Eleitoral, em 1984, e quando o partido se opôs a votar a favor da Constituição, em 1988, ou quando não apoiou o governo Itamar Franco, depois do impeachment de Collor, apesar dos pedidos de Itamar e de sua vontade de incorporar boa parte da agenda do PT. Ou quando o partido se opôs ao Plano Real, sem o que nós não teríamos vencido a inflação, que explorava os mais pobres e inviabilizava os governos no Brasil. Nada de bom teria acontecido no Brasil sem o Plano Real, que foi a mais importante mudança depois da reconquista da democracia. Gabeira esteve sempre no lugar certo. E sempre com transparência. Acho que o país deve muito a ele. Minha geração, em especial. Eu sinto que devo muito a ele.

Cesar Maia

Uma prodigiosa e admirável inteligência a serviço das piores causas e dos interesses que as movem ou delas se beneficiam. Uma pena para o Brasil. Se as causas populares, progressistas, libertárias, democráticas contassem com uma liderança e um pensador como ele, o Brasil teria avançado bem mais. Já disse a ele, pessoalmente. Trata-se de uma das maiores inteligências da política brasileira aplicada numa direção lamentável. E tudo isso por cálculo. Ele era um homem de esquerda. Quando foi eleito prefeito e fez uma excelente gestão, avaliou que, no Rio, a esquerda estava ocupada pelo PT, por Brizola e seus seguidores, como Marcelo Alencar, Saturnino Braga, Darcy Ribeiro e outros. Concluiu que se quisesse fazer carreira política teria de ir para a direita, que estava praticamente órfã de Carlos Lacerda. Eram 30% de votos a procura de um representante. Fez as malas e se mudou para o porto seguro do lacerdismo. Só que ele não se deu conta de que esses 30% são um grande patrimônio mas também um teto intransponível. Ele nunca venceria uma eleição para o governo do Rio, ainda que garantisse para si um bom lugar ao sol. Esse oportunismo o condenou a ser para sempre um político regional e mediano, quando tem talento para muito mais. Mas o que eu realmente não perdôo em Cesar Maia é o cinismo oportunista com que crítica os outros pensando apenas nos cálculos eleitorais, sem nenhum compromisso com a verdade ou a justiça. Ou seja, bye bye interesse público.

Antony Garotinho

Que tristeza. Era uma figura notável: inteligente, aberta, criativa, ágil, e tinha o coração do lado certo. Isso fazia dele um excelente gestor e uma liderança com extraordinário potencial. Sou testemunha de que ele verdadeiramente se identifica com as causas populares e democráticas e que muito sinceramente vibra com os valores que eu também cultuo. Pelo menos ele era assim em 1998, 1999 até início de 2000. Tanto que o ano de 1999 foi espetacular para o Rio e isso se traduziu em aprovação recorde de seu governo, naquele momento. Que desastre a ambição humana desmedida. Ele deu o beijo em Mefistófeles e celebrou o pacto com o diabo. Como Fausto. A imensa aprovação popular o convenceu de que ele poderia vencer Lula em 2002. Consumido por esse sonho precoce, precipitado, sacrificou nossos planos todos, os compromissos de governo, em nome do novo projeto. Jogou fora os vínculos com a esquerda, balcanizou o governo, trazendo o PMDB e toda a velha fisiologia, mudou a postura, o discurso, a imagem, a identidade e não cessou de seguir em frente, cercado de bajuladores incompetentes, com raras exceções. Hoje, é esse desastre, que aglutina o que há de pior. Perdeu-se, irremediavelmente.

Lindberg Farias

Uma figura humana extraordinária, um gestor corajoso e visionário, um político que combina como poucos o realismo e o reconhecimento de que é preciso fazer concessões com a fidelidade aos valores democráticos e populares. O maior carisma da política brasileira depois de Lula. O futuro do Rio, depois de Gabeira.

Sérgio Cabral

Uma pessoa charmosa, simpática, encantadora. Ele tem a quem puxar: o pai é uma grande figura. Sempre foi assim. Fui seu professor na Faculdade da Cidade em 1982 e andamos próximos na militância daqueles tempos. Infelizmente, há muitos anos ele se ligou aos grupos fisiológicos da política fluminense. Seu governo combina excelentes quadros e ótimas ações, com a reiteração de velhos padrões e compromissos. Um passo adiante; um passo atrás. Assim não vamos muito longe.

Picciani

Representa uma política à qual o Rio deve, em parte, seu atraso.


20. O que existe de pior e de melhor nos candidatos a presidência?

Dilma Rousseff

O melhor: É uma pessoa de muito valor. Séria, honesta, competente. Seus compromissos com valores da justiça, da equidade e da democracia me parecem inquestionáveis. O pior: a inexperiência política, o autoritarismo que a caracteriza como gestora e a visão estreita, antiquada e anti-ecológica que tem a respeito do desenvolvimento.

Marina Silva

O melhor: Trata-se de uma das pessoas mais admiráveis que conheci na vida. Tanto pela ética, quanto pela inteligência. Seus compromissos com os valores da justiça, da equidade e da democracia são firmes, verdadeiros e profundos. É competente, honrada, devotada ao trabalho, capaz de liderar com firmeza e doçura. É a única candidata que tem carisma. Ao contrário de Dilma e Serra, sua personalidade não é autoritária, pelo contrário, o que a torna, ao contrário dos outros dois, uma agregadora. Sua visão do desenvolvimento incorpora a questão ambiental, a questão da qualidade de vida e os temas contemporâneos sobre as grandes cidades, que Dilma e Serra desconsideram, solenemente. O pior: seu partido é frágil e sua candidatura está politicamente solitária, o que limita muito todo seu extraordinário potencial.

José Serra

O melhor: Assim como Dilma, é uma pessoa de muito valor. Séria, honesta, competente, dedicada ao trabalho. Tem uma formação intelectual de muita qualidade e é o mais experiente. Seus valores são ótimos. Iguais aos de Dilma. O pior: sua visão de desenvolvimento é antiquada como a de Dilma. Pior ainda são suas alianças com o DEM, com Kátia Abreu, com a direita.

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